domingo, 19 de dezembro de 2010

A verdade histórica de Odir Cunha


Tenho acompanhado com entusiasmo a discussão que tomou conta da mídia esportiva. Afinal de contas, os títulos conquistados na Taça Brasil e no Roberto Gomes Pedrosa, a partir de 1959, devem ser considerados títulos nacionais, dando aos vencedores o glorioso epíteto de campeão brasileiro?
O mais polêmico, no entanto, não é o reconhecimento destes campeonatos como nacionais. A discussão gira em torno da junção destes títulos aos conquistados a partir de 1971, quando o Campeonato Nacional foi oficialmente criado pela CBF. A querela se torna ainda mais dramática quando os famosos especialistas do assunto travam a sua guerra do “vamos ver quem sabe mais”, deixando tudo mais complicado, porque, evidentemente, esses caras sabem muita coisa da história do nosso querido futebol.
Um dos mais bem informados a respeito do assunto, Odir Cunha foi o jornalista que apresentou à Confederação Brasileira de Futebol o dossiê que dá respaldo à unificação. Como a intenção de Odir é “democratizar” o conhecimento produzido através da venda de um futuro livro, não temos ainda acesso à íntegra do documento (pelo menos minha procura não encontrou resultado). No entanto, devido ao acalorado debate que o dossiê gerou, Odir tem postado no seu blog, à guisa de justificativa, os pontos fundamentais da sua pesquisa histórica.
Segundo o jornalista, a pesquisa empreendida por ele é verdadeira devido aos testemunhos dos jogadores daquela época e que participaram do campeonato. Além disso, o depoimento dado pelo tradicionalíssimo Sr. João Havelange dá ao dossiê a plenitude das inexistentes verdades irrefutáveis.
As pilastras do documento, porém, não se limitam a isso. O jornalista atesta, através dos arquivos da CBD, que efetivamente a Taça Brasil foi criada para definir o campeão brasileiro. Para corroborar tudo isto, Odir Cunha lança mão das muitíssimas manchetes dos jornais da época que atribuíam aos vencedores das competições o título de campeão nacional.
Gostaria de abrir outra discussão sobre tudo isso. Será que todos estes indícios bastam para conseguir-se uma verdade indiscutível do passado? No cerne da discussão, há uma querela antiga do ramo da historiografia.
Ao afirmar que “os documentos sobrevivem para comprovar a veracidade eterna dos fatos” e outras coisas do tipo, Odir Cunha demonstrou que seu conceito de verdade histórica está muito ultrapassado.
 Sabemos hoje que só os documentos não bastam para garantir o que “efetivamente aconteceu” no passado, apesar de serem eles parte fundamental dentro da pesquisa histórica. Quando escrevo “documentos”, quero dizer todos os tipos de resquícios que o tempo guardou de uma determinada época: ofícios assinados, pareceres, testemunhas oculares etc. Sabemos também que é fundamental a crítica de tudo isso. Com as coisas certas nas mãos, é muito fácil ser tendencioso, ou seja, extrair do nosso objeto de análise exatamente aquilo que nos interessa, e deixar o resto de lado.
No caso de Odir Cunha, a imparcialidade dos resultados da sua pesquisa – não estou afirmando que ela exista – é o ponto mais discutido. O Santos, clube do qual Odir Cunha se autodenomina ombudsman, é um dos mais beneficiados do dossiê pela unificação. É óbvio que isto não é suficiente para invalidar uma pesquisa histórica bem feita, onde o compromisso com a verdade objetiva deve estar acima de tudo. Mas é inevitável que, num caso como este, envolvido com tantas paixões, a questão da tendenciosidade não seja mobilizada contrariamente ao jornalista.
O conhecimento histórico não é produzido a partir da veracidade dos fatos que o historiador diz existir nos documentos, mas sim através do consenso produzido pela crítica das intersubjetividades sobre aquela verdade. A força de uma verdade é definida pela maioria dos interesses nela envolvidos. A validade de uma verdade é tão maior quanto mais o seu conteúdo conseguir adquirir consenso.
Talvez seja por isso que a pesquisa de Odir esteja gerando tanta discussão. Futebol, hoje em dia, e no Brasil, é da competência de quase todo mundo. Quase todo mundo se julga bom entendedor do assunto; quase todo mundo acompanha os campeonatos de perto; quase todo mundo é fanático por um clube; quase todo mundo vangloria-se por seu time ter três, quatro, cinco ou mais títulos nacionais – estes casos, no entanto, competem a um mundo um pouco mais reduzido. O terreno desbravado por Odir Cunha é extremamente pantanoso. A verdade que o jornalista afirma não é, de maneira alguma, irrefutável, como ele costuma afirmar. A história nos ensina que o caminho para isso é longo. No entanto, nada invalida os esforços dos partidários desta ou daquela verdade em fazer com que suas posições sejam reconhecidas.
Apesar do meu ponto de vista estar formado, terei que segurar a tentação em escrever vinte linhas defendendo tais posições. O debate está sendo travado por sujeitos altamente competentes, e não carece de mais pontos de vista do que os já em circulação na mídia. Eu disse na mídia! Porque, importantíssima para a discussão, será a recepção dada pela opinião publica.
Não obstante tudo isso, no final das contas, não é aquilo que um jornalista, ou vinte, ou até a CBF decretar que será imediatamente imposto como a história do futebol brasileiro. Não se interfere no passado da mesma maneira que se troca de camisas. Estamos falando da História, a Deusa dos cabelos brancos! Aquela que nos ensina que cada coisa tem seu lugar! Que é preciso respeitar as mudanças do tempo! E como toda deidade venerada, é blasfêmia usar seu nome em vão.

2 comentários:

  1. Rafael,
    Para mim, o mais intrigante de tudo é o fato desta discussão ter demorado 40 anos para acontecer.
    Em 1971 talvez ela fosse desnecessária, mas porque não houve na década de 80 ou 90?
    Gosto da história do futebol e leio sobre o assunto desde meados da década de 90 e desde sempre me intrigou o completo esquecimento acerca destas competições já à época. A Internet sempre foi uma fonte incomparavelmente mais rica sobre o assunto do que as publicações tradicionais.
    Sem entrar no mérito, mas agora se diz que a história está sendo reescrita, quando na verdade isto vem sendo feito ao longo de quatro décadas de silêncio sobre o assunto.
    E pouco tem se ouvido os agentes desta história, que estão quase todos vivos.

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  2. Alexandre,
    Acho fundamental o que você falou por último. É imprescindível que os agentes da época sejam escutados. Mas isso nunca pode ser feito buscando reparar uma injustiça, ou partindo de qualquer outro pressuposto valorativo/subjetivo que seja. O passado deve ser visto enquanto passado. Creio que isso basta para a sua grandiosa importância na vida dos sujeitos do presente. Recorrer a ele com vistas numa possível utilidade para o presente, isto sim é uma grande injustiça. Com toda certeza há nessa história mais agentes do que os pentacampeões santistas da década de 1960.

    A sua indagação também é muito pertinente: Por que esta discussão está acontecendo justamente agora?

    Não vou me atrever a arriscar qualquer resposta.

    Abraços

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